Conexões: Relato sobre a Venezuela hoje
Portuguesa estava na Venezuela há 32 anos, onde a família tem uma padaria e chegou a empregar 22 pessoas. Teresa Maia veio para Portugal visitar a família e não voltou à Venezuela, após o agravamento da crise. E foi durante minha visita à Fátima que conheci sua história e trago seu relato sobre o país vizinho do nosso Brasil.
Teresa Maia: “O salário mínimo vigente no País dá apenas para comprar 18 pães ou um frango por mês. ”
Conheci Teresa Maia na Comunidade Lys Fátima, na região de Dornes, próxima à Fatima, Portugal, durante vivência espiritual em março. [Estou em Portugal há mais de dois meses – retorno para o Brasil em 30 de abril com a bagagem recheada de histórias]
E de por meios dos arranjos de Maria, nossa Mãe Celestial, fui acolhida carinhosamente em sua casa daqui de Portugal. Na noite em que cheguei, participei do jantar comemorativo do aniversário de sua filha Dilce, na casa de dona Maria, mãe de Teresa. Vale dizer que a comemoração era estritamente familiar e intimista e eu, a estranha ali.
E foi durante esta pequena vivência, que despertou o desejo de relatar sobre sua vida nos tempos atuais. A fala é dela. Coube-me escutá-la, sem emitir opinião sobre o contexto vivenciado pela narradora.
O retorno à Venezuela adiado
As malas estavam prontas. Em 5 de abril, ela retornaria à Venezuela, país que ela e o marido escolheram para construir suas vidas, mas foram desfeitas após o telefonema dele que relatou-lhe que ficariam sem água e luz durante um mês. A situação do país é de caos – um caos que vem alastrando há alguns anos frente às crises instauradas: política e socioeconômica.
Teresa Maia é natural da aldeia Póvoa do Valado, que pertence à Freguesia Nossa Senhora de Fátima, que por sua vez pertence ao Concelho de Aveiro, Portugal, onde está desde novembro do ano passado. Como faz todo ano, vem nesta época para passar as festas de final do ano com a família daqui: mãe, irmãs, cunhados e sobrinhos. Aqui também tem uma casa confortável, construída com dinheiro ganho na Venezuela. Todos moram próximos, construíram suas casas nas prósperas terras da família, que em tempos passados foi uma quinta (fazenda).
Este ano sua estadia está sendo diferente, mais longa e, agora, sem data para retorno. Veio também para visitar a filha Dilce, seu marido venezuelano e a netinha, que estão morando em sua casa aqui. Vieram para trabalhar. Dilce é advogada, e na Venezuela estava à frente do negócio junto com a família: uma padaria, que em tempos normais, empregava 22 funcionários. Aqui trabalha no atendimento de clientes em um restaurante de um shopping.
A família de Teresa está repartida. Carlos, o marido e Carlos, o filho, estão na Venezuela. A padaria funciona, mas com mercadorias e horários reduzidos. Não há insumos suficientes e o pouco que conseguem comprar, o preço é exorbitante. Também não há clientes, pois sem dinheiro circulando, não se come. “O salário mínimo vigente no País dá apenas para comprar 18 pães ou um frango por mês”, enfatiza, ela.
Ao narrar sua história, Teresa, por vezes, fica com o olhar triste, um pouco perdido. Emociona-se ao final da entrevista e eu também. Abraçamos. Sinto a sua dor e a dor de muitos que lá estão e de outros, que estão vivendo como refugiados, na Colômbia, no Chile, no Peru e também no Brasil, em Boa Vista, Roraima.
A ida para a Venezuela
“Há 32 anos, eu e meu marido fomos para Venezuela, éramos recém-casados e Portugal estava vivendo uma situação difícil e como nós tínhamos família lá, fomos começar nossa vida. Muitos portugueses para lá imigraram, pois tinha incentivo do Governo.
Inicialmente fomos para Punto Fijo, que fica no interior. Trabalhamos um ano e pouco com meu cunhado que tinha uma padaria. Depois fomos para Caracas. Lá Carlos comprou parte de um negócio: repartição de morangos e produtos lácteos para padarias, restaurantes. Eu ajudava também. O negócio durou cinco anos.
Depois fomos para o interior novamente, para Coro, a primeira capital da Venezuela, uma das cidades mais antigas do País, Patrimônio Cultural da Humanidade. É banhada pelo Mar do Caribe, quente, mas também ventosa. Há apenas uma hora fica a serra, que está a 1800 metros de altitude.
Bom, lá compramos uma padaria e o negócio foi prosperando. Chegou uma época que tínhamos 22 funcionários. Nossos dois filhos nasceram lá – o Carlos, o nosso Carlito, e a Dilce. Dilce se casou com um venezuelano e temos uma neta. Todos trabalhávamos juntos na padaria.
Compramos uma fazenda e fizemos uma casa. Temos um apartamento e construímos esta casa aqui em Portugal também. Sempre vivemos muito tranquilos.
O início da crise
Tudo ia muito bem até há uns cinco anos atrás. A crise começou no governo de Chaves, mas se agravou mesmo foi há cinco anos. E tudo isto levou a Venezuela a uma crise. Fazendas e empresas foram desapropriadas. Há três anos começou a faltar alimentos.
Quando começamos com a padaria, consumíamos vinte sacos de farinha por dia para fazer pão. Hoje, usamos dois. O pão é muitíssimo caro. Nós comprávamos a farinha diretamente do moinho. Faz uns três anos que o Governo se apropriou dos moinhos. Nós comprávamos uns 400, 500 sacos de farinha por mês. O Governo começou a dar um cupom de 70, 80 sacos por mês apenas. O preço é uma loucura. Não é mais em bolívar, é em dólar. Bolívar não existe lá mais. O valor hoje de um saco de farinha é 60 dólares. E o mais triste é que na fatura que nos dão o valor é de 5.400 bolívares, que equivale a mais ou menos a dois dólares – valor real. E não é só a farinha. É tudo que se usa para fazer o pão: a levedura, a manteiga, o açúcar e todos os itens. Em muitos dias, não tínhamos ingredientes para fazer nada.
Dos 22 funcionários, todos registrados na segurança social, dez deles foram embora por iniciativa deles. O ordenado é pouco e decidiram ir embora. O salário hoje é 18 mil bolívares – 5 dólares mais ou menos -, ordenado estipulado pelo Governo. Com este salário dá para comprar 18 pães ou um frango.
Se você fizer a pergunta como as pessoas fazem para sobreviver, porque não é viver, eu digo: não sei. A maioria das pessoas que hoje sobrevive na Venezuela é porquê tem algum familiar que está fora do País e que manda algum dinheiro em dólar e com isto as pessoas vão sobrevivendo.
Uma vez chegou uma mulher na nossa padaria e pediu emprego em troca de um pão. Disse que tinha quatro filhos e não tinha nada para comerem. Nós demos trabalho para ela.
Mas aqueles que não têm ninguém fora, a classe mais pobre, come frutas como bananas e mangas, quando tem, compram milho. Hoje, está escasso, pois falta incentivo na agricultura, para preparem o arepa, prato típico de lá. Isto. O Governo dá certas ajudas que é o Clap, uma caixa com alguns alimentos. No princípio, chegava pelo menos uma vez ao mês, mas depois das sanções feitas pelos Estados Unidos, dizem que não tem dinheiro para comprar. Esta bolsa chega agora à cada três ou quatro meses.
Os produtos de higiene pessoal são muito caros, as pessoas quase não usam mais. Penses higiênicos (absorventes) já não usam, voltaram a usar paninhos.
A padaria está no meio de dois supermercados – um deles é grande, reduziu os funcionários e só tem verduras, carne de vez em quando, água mineral. Um dia chega o arroz, só pode comprar de 1 a 2 quilos.
A crise é em todas as camadas sociais. Mesmo quem tem dinheiro, não tem onde comprar ou comprar no mercado negro. São eles, os militares, que controlam os produtos todos. Mesmo as pessoas de classe média, não tem dinheiro para comprar produtos em dólar.
Estoque de comida
Não, nós nunca passamos fome. Eu fiz um estoque há um ano – atum, maionese, produtos de higiene. Meu filho trouxe algumas coisas dos Estados Unidos, onde foi trabalhar. Minha mãe envia daqui de Portugal.
Antes trabalhávamos das seis da manhã às oito da noite, hoje, das sete às dezessete e trinta. E também já há quase mais nada para vender. Vendíamos outras coisas. pastelaria, refrescos, charcuteria . Hoje não fazemos quase nada disto, pois não temos insumos e também fica caro para as pessoas comprarem.
Hoje já não oferecem refeição para as crianças nas escolas e devido à crise elétrica, a escola vive mais fechada. E também os alunos mais pobres já não vão à escola, pois os pais não têm dinheiro para comprar a merenda. Não têm dinheiro para comprar uniformes, sapatos.
Histórias de suicídio, mortes por desnutrição, pessoas morrendo nos hospitais, sem condições de atendimento digno são comuns. Ajudas humanitárias não podem entrar no País.
Muito forte! [silêncio, lágrimas].”
Sobre Ana Beraldo
Ana Beraldo, jornalista, produtora cultural, autora de livros, contadora – e boa ouvinte – de histórias. É coautora do museu virtual www.memoriadopovo.com.br e do site www.portaldovestibular.com.br – que traz informações sobre cursos superiores no Sul de Minas -, e outras coisitas mais. Espiritualista, andante, ativista da paz e do amor universal.